SÉRIE “OS CONTRATOS DE ARRENDAMENTO NO CONTEXTO DA COVID-19”
TAKE II – Diferimento de Rendas
A segunda medida aprovada pelo Governo português para auxiliar famílias e empresas no contexto da Covid-19 passa pela flexibilização dos prazos para pagamento de rendas que se vençam durante o estado de emergência (ou seja, a partir do corrente mês de abril de 2020) e no mês imediatamente a seguir, e que sejam devidas no âmbito de contratos de arrendamento para habitação de imóveis que constituam habitação própria permanente dos arrendatários(1) ou de contratos de arrendamento para fins não habitacionais.
Este direito a diferir ou, se se quiser, adiar a obrigação de pagamento das rendas que se vençam naquele período não se estende a todo o universo de arrendatários, habitacionais e não habitacionais, já que depende, nos arrendamentos habitacionais, da verificação de determinada queda de rendimentos do agregado familiar decorrente da contração económica provocada pela Covid-19 e, nos arrendamentos não habitacionais, do encerramento do estabelecimento ao público ou da suspensão das respetivas atividades. É ainda necessária a notificação do senhorio para que este direito lhe seja oponível.
A) Arrendamento habitacional
Quanto aos arrendatários habitacionais, cabe-lhes demonstrar (i) uma quebra superior a 20 % dos rendimentos(2) de todo o agregado familiar face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior, e que (ii) a taxa de esforço do agregado familiar – calculada como a percentagem dos rendimentos de todos os membros daquele agregado destinada ao pagamento da renda – seja superior a 35%. Vejamos:
Imaginemos um agregado composto por dois adultos e um menor, em que ambos os adultos são trabalhadores dependentes. Devido à pandemia, ambos estão em layoff e, por conseguinte, sofrem cortes salariais na ordem dos 33%. Vejamos:
- Rendimento mensal bruto normal (no mês de março de 2020): 3.000,00 Euros
- Rendimento mensal atual (mês de abril de 2020): 2.000,00 Euros
- Valor da renda mensal da habitação permanente: 900,00 Euros
Pressupostos de aplicação:
- Quebra superior a 20 % dos rendimentos do agregado familiar:
(3.000,00€ x 20% = 600,00€)
Neste caso, a família registou uma quebra de, aproximadamente, 34% dos seus rendimentos, uma vez que aufere menos 1.000,00 Euros face aos rendimentos do mês anterior. Sendo ambos os cônjuges trabalhadores dependentes, os recibos de vencimento serão suficientes para comprovar a quebra.
- A taxa de esforço do agregado familiar destinada ao pagamento da renda seja superior a 35%:
(2.000,00€ x 35% = 700€)
Atendendo ao rendimento atual do agregado familiar (2.000,00 Euros), o valor destinado ao pagamento da renda não poderá ultrapassar os 700,00 Euros. Se a renda mensal é de 900,00 Euros, a taxa de esforço rondará os 45%, pelo que está preenchido o segundo pressuposto de aplicação da medida.
A segunda condição essencial para que o arrendatário num contrato de arrendamento para habitação possa beneficiar do direito ao diferimento no pagamento de rendas é a notificação ao senhorio, atempada e completa: por escrito (preferencialmente por correio eletrónico) e anexando documentação comprovativa da quebra de rendimentos(3).
A comunicação ao senhorio deverá ser efetuada até cinco dias antes do vencimento da primeira renda em que o arrendatário pretende beneficiar do apoio. Porém, se o arrendatário tencionar diferir o pagamento da renda de abril de 2020, pode notificar o senhorio até ao dia 27 deste mês, sem incorrer em qualquer penalização.
B) Arrendamento não habitacional
Nos contratos de arrendamento para fins não habitacionais os arrendatários poderão beneficiar do direito ao diferimento do pagamento de rendas desde que se trate de (i) estabelecimentos abertos ao público destinados a comércio a retalho e prestação de serviços, que (ii) tenham sido encerrados ou cujas atividades estejam suspensas durante o estado de emergência(4), mesmo que mantenham a prestação de atividades de comércio eletrónico, de prestação de serviços à distância ou através de plataforma eletrónica e, no caso dos estabelecimentos de restauração e similares, ainda que funcionem em regime de take away ou de entrega ao domicílio.
Não é, pois, necessária qualquer prova da quebra de rendimentos do arrendatário para que este possa beneficiar do direito ao diferimento da renda, já que esta, face ao cenário de encerramento dos estabelecimentos, se presume.
Já quanto à obrigação de o arrendatário comunicar ao senhorio que pretende beneficiar do regime legal, apesar de a lei ser omissa e de o encerramento dos estabelecimentos ser imposto por lei, parece-nos que ela não deve deixar de ser feita, seja pelo imperativo de boa-fé na execução dos contratos, seja porque as partes poderão querer negociar os termos do diferimento de rendas indo para além do que a lei dispõe.
C) Consequências do diferimento na relação contratual
Havendo lugar ao diferimento das rendas que se vençam durante o estado de emergência e no mês subsequente, o pagamento da totalidade das rendas diferidas é devido pelo arrendatário – se as partes não acordarem em sentido diferente – nos doze meses seguintes ao termo do período de diferimento. Assim, se o estado de emergência vigorar até maio de 2020, o diferimento poderá ter lugar até junho de 2020, e as rendas que não tenham sido pagas nos meses de abril, maio e junho de 2020 deverão ser regularizadas entre julho de 2020 e junho de 2021, em doze prestações mensais não inferiores a 1/12 (um duodécimo) do montante total em dívida, e são devidas juntamente com a renda de cada mês.
Retomando o exemplo acima, a família que tenha diferido as rendas de abril, maio e junho de 2020, no valor de 900 Euros cada, deverá pagar os 2.700 Euros de rendas diferidas em doze prestações de 225 Eur cada, entre julho de 2020 e junho de 2021, devendo pagar mensalmente ao senhorio, durante aquele período, e se a renda não sofrer alterações, a quantia de 1125 Eur.
Quer a duração do período de diferimento, quer o prazo, número e montante das prestações mensais devidas para regularizar o pagamento das rendas diferidas poderão, em nosso entender, ser alterados por acordo das partes, que são livres de ampliar ou reduzir aqueles prazos e de estipular diferentes consequências para o diferimento. Se nada for acordado em sentido diverso, será aplicável o regime legal acima exposto.
Ao incumprimento da obrigação de pagamento das rendas diferidas aplicar-se-á, no arrendamento habitacional, o regime geral previsto no Código Civil para a mora do locatário e para a resolução do contrato com fundamento na falta ou mora no pagamento da renda e, no arrendamento não habitacional, o que as partes tenham disposto no contrato e, subsidiariamente, as disposições legais aplicáveis ao arrendamento não habitacional e ao arrendamento habitacional.
Isto significa que o arrendatário que tenha beneficiado do direito ao diferimento e, findo esse período, apenas pague a renda mensal referente ao mês em causa, e não o acréscimo devido para regularizar as rendas em atraso, pode ver o contrato de arrendamento resolvido pelo senhorio se a mora no pagamento de qualquer uma das prestações devidas para regularizar as rendas em atraso for igual ou superior a três meses.
O não pagamento de rendas durante o período em que o vigore o direito ao seu diferimento, no arrendamento habitacional, e ainda o encerramento de instalações e estabelecimentos, no arrendamento não habitacional, não pode ser invocado pelos senhorios como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento, nem como fundamento de obrigação de desocupação dos imóveis em que os estabelecimentos se encontrem instalados.
Por outro lado, a indemnização por mora do arrendatário no pagamento das rendas não é exigível enquanto vigorar o direito ao diferimento nos casos e nos termos legalmente previstos, não podendo ser aplicadas outras penalidades contratualmente previstas no âmbito do arrendamento não habitacional.
Por maioria de razão, enquanto o arrendatário tiver direito a diferir o pagamento de tais rendas, também não pode o senhorio exigir o seu pagamento a um fiador, pela simples razão de que não existe, ainda, mora no cumprimento da obrigação de pagamento dessas rendas.
Sabemos que no mês seguinte à cessação do estado de emergência em Portugal a economia não estará a funcionar como dantes e que as dificuldades económicas subsistirão. Para evitar conflitos entre arrendatários e senhorios é, pois, aconselhável que as partes acordem, por meio de aditamento contratual, os precisos termos em que as rendas em atraso devem ser pagas findo o período de diferimento.
É ainda particularmente relevante acautelar os casos em que os contratos cessem por caducidade ou oposição à renovação promovida pelo senhorio antes de regularizado o pagamento das rendas diferidas. A lei apenas esclarece que, em caso de cessação por iniciativa do arrendatário, as rendas vencidas e não pagas são devidas na totalidade a partir da data da cessação. Todavia, parece-nos que a também a cessação de um contrato por caducidade ou por iniciativa do senhorio não pode determinar o perdão de dívida do arrendatário que tenha beneficiado do direito ao diferimento de rendas.
Em suma, é muito ténue a conjugação de interesses de arrendatários e senhorios estabelecida pelo regime excecional aprovado em matéria de arrendamento urbano para fazer face às dificuldades económicas que o combate à Covid-19 está a provocar, pelo que as partes deverão, tanto quanto possível, prevenir hoje conflitos que não tardarão em surgir num futuro muito próximo.
Estas são algumas reflexões de caráter geral que nos parecem pertinentes a propósito do direito ao diferimento de rendas, e não dispensam a análise de cada caso concreto.
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(1) A lei presume que é habitação própria permanente do arrendatário a habitação correspondente à sua morada fiscal.
(2) Para efeito de demonstração da quebra de rendimentos releva: a) nos rendimentos do trabalho dependente, o respetivo valor bruto; b) nos rendimentos empresariais ou profissionais (categoria B do IRS), o valor antes de IVA; c) nas pensões, o respetivo valor mensal bruto; d) nos rendimentos prediais, o valor das rendas recebidas; e) nas prestações sociais e apoios à habitação, o respetivo valor mensal; f) nos outros rendimentos, desde que recebidos de forma regular ou periódica, o respetivo valor.
Os rendimentos devem ser comprovados por recibos de vencimento (trabalho dependente), recibos ou faturas emitidas (empresariais ou profissionais), documentos emitidos pelas entidades pagadoras ou outros que demonstrem o seu efetivo recebimento, ou ainda, quando atenta a natureza da prestação não seja possível apresentar qualquer daqueles documentos, por declaração de honra do beneficiário (pensões, rendas, apoios à habitação e outros rendimentos regulares ou periódicos).
(3) Apenas a declaração de compromisso de honra, quando necessária, pode ser entregue ao senhorio até 30 dias após a comunicação. Se a obtenção do comprovativo de quebra de rendimentos (ex. recibo de vencimento) depender, à data em que é feita a comunicação, de emissão pela entidade competente, o arrendatário deve informar o senhorio e indicar a data prevista para a respetiva obtenção.
(4) Ao abrigo do Decreto n.º 2 -A/2020, de 20 de março, ou por determinação legislativa ou administrativa, nos termos previstos no Decreto -Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, ou ao abrigo da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, ou de outras disposições destinadas à execução do estado de emergência.
Joana Neto Mestre | Jéssica Ramos